ANA
Já deveria estar dormindo, mas tudo que conseguia fazer era rolar na
cama. Olhava para o teto, para o abajur, para a cômoda e depois para o teto de
novo. Não conseguia tirar a angústia que sentia de seu corpo e a nova manhã
demorava uma eternidade para chegar.
Ouviu o leve miado de seu gato e decidiu levantar para abrir-lhe a
porta. Talvez com o gato fora do quarto conseguisse dormir. Não dormiu.
Olhou para o relógio, àquela hora Ana dormia tranquilamente em sua cama
macia, os grandes olhos verdes fechados no meio da escuridão.
No fundo, sabia a origem daquele sentimento sufocante, mas não queria
encarar a verdade assim, de pronto. Viu um clarão pela janela e percebeu os
pingos na vidraça. Talvez a chuva ajudasse. Não ajudou. Será que Ana percebia a
chuva?
Teve que pensar, não podia mais fugir: ia rever Ana no dia seguinte.
Passara-se um mês desde que olhara para o rosto oval e dissera: “Adeus”. Pensou
que nunca voltaria aquele lugar. Deixara uma parte de seu coração.
Quando chegou a casa naquela tarde, sua mãe comunicou-lhe que voltariam.
Por um instante seu coração parou: iria até Ana. Não jantou e foi cedo para a
cama, queria que tudo passasse de uma vez. Mas o sono não vinha, mesmo tendo a
meia-noite ficado para trás há muito.
Foi ao banheiro e acabou olhando-se no espelho. Seu reflexo mudara
muito, já não o reconhecia mais. Era um estranho que o olhava de dentro do
espelho.
Novamente na cama, voltou ao passado e ouviu a voz de Ana chamando seu
nome. Voz doce e um pouco fina, sempre fitando a todos com os grandes olhos
verdes, olhos que exprimiam todos os sentimentos do mundo e podiam ler nas
almas o que acontecia com as pessoas.
Finalmente o relógio marcou seis horas e sentiu-se o cheiro de café pela
casa. Hora de se preparar.
Colocou a roupa que achou ser a mais adequada. Preferiu não olhar para o
espelho.
Foi até a cozinha e a mãe já estava lá. Sentaram-se, ambos em silêncio,
para o desjejum. A expressão sombria da mãe o assustava.
Queria quebrar o silêncio, mas não sabia como. Acabou perguntando: “Acha
que Ana vai nos ver, nos perceber?”. Recebeu apenas silêncio e algumas lágrimas
como resposta.
Ajudou a mãe com a louça e saíram. Mais silêncio.
Chegaram e olharam. Não era mais possível conter as lágrimas: de dentro
da pequena foto, Ana fitava-os com seus grandes olhos verdes. Só agora media a
saudade que sentira dela.
Deu-lhe as flores que comprara especialmente para ela. Violetas eram as
suas preferidas.
Amparando a mãe, disse um novo adeus a Ana. E novamente pensou que não
voltaria aquele lugar. Mas um pedaço de seu coração continuaria ali.
Entregou um lenço para que a mãe enxugasse as lágrimas. Ela
comunicou-lhe que voltariam no ano seguinte. Teve uma sensação de pânico, mas
conteve-se. Precisava conter-se.
Aquele fora o primeiro, mas não seria o último dia de finados a passar
com Ana. E foram se afastando lentamente, enquanto a chuva recomeçava. Mas não
sentiam os pingos de chuva, tudo o que sentiam era que grandes olhos verdes os
fitavam do céu.
FabianaSão Paulo, 24/08/2004
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